Foi no momento do impeachment, em 1992, que o País redescobriu o Ministério Público. Ali se apresentou uma nova geração, particularmente de Procuradores da República, a atacar casos de corrupção.
II
Começou uma nova fase. A visão anterior do Ministério Público era diferente. O MP, no Brasil, era visto como o braço da ditadura para mover ações contra os perseguidos políticos. É claro: a ordem jurídica era perversa; a legislação, autoritária. Cabia ao Ministério Público fazer cumprir aquela legislação autoritária. E muitos se prestaram maravilhosamente àquele papel.
III
Passado o momento do impeachment, em 92, ainda perdurou o fascínio pelo MP, exatamente em virtude dos jovens procuradores que se apresentavam à socieade. Mas havia, e ainda há, vícios no Ministério Público, inércia. Há falta de procuradores, de promotores, mas em boa parte dos casos o que há é falta de mecanismos de cobrança, que apontem a produtividade, a dedicação às causas e à profissão. Não raro o papel do Procurador ou do Promotor é apenas o de exarar pareceres, as “cotas”, em processos, não raro de uma superficialidade gritante.
IV
No caso Aerus, por exemplo, deveria ser instalado inquérito civil público, em Brasília, tão logo a ação foi para o primeiro parecer do MP. Isso não aconteceu. Ao contrário, o Ministério Público opinou pela ILEGITIMIDADE ATIVA do Sindicato para mover a ação em defesa dos participantes do Aerus. Em outas palavras, o Ministério Público não agiu, e também não queria que o Sindicato agisse. Também no que se refere ao Aeros, onde o Ministério Público obrigatoriamente atua na ação, também na CAPAF, fundo de pensão do BASA. Todos têm ações que foram ao Ministério Público. Caberia ao Ministério Público dar início a procedimentos investigatórios, por si mesmo. E assim não ocorreu.
V
Ou seja, já ultrapassamos o período de endeusamento do Ministério Público. E está aí, hoje, com suas fraquezas à mostra, frequentemente com sua inércia, com a falta de mecanismos de aferição da produtividade dos seus procuradores, não raro com pareceres de uma superficialidade deprimente. O Ministério Público, pois, é outro órgão que precisa se repensar, que precisa reconquistar o respeito que já teve há poucos anos.
VI
Essa foi uma longa introdução para falar da vice-procuradora geral eleitoral Dra. Sandra Cureau. A referida senhora perdeu completamente a dimensão do seu cargo e, portanto, perdeu a autoridade. É mais grave do que isso, ainda: há nítido abuso de autoridade por parte da referida vice-procuradora geral eleitoral. Há poucos dias, resolveu requisitar à revista Carta Capital cópia de todos os contratos de publicidade da revista com o governo federal desde o ano de 2007. Nada pediu à Veja – que tem contratos milionários com o governo de São Paulo, à Época, à Folha de São Paulo, ao Estadão, à Globo. Requisitou à Carta Capital. A Carta, por sua vez, olhou qual a origem disso tudo: uma denúncia anônima. E o STF já pacificou que denúncia anônima não é base suficiente para mover o Ministério Público. Mas a Dra. Cureau fez isso, e expôs o Ministério Público ao ridículo.
VI
Ontem, foi pior. A mesma Dra. Sandra Curea dá entrevista à Folha de São Paulo e diz que “Lula quer eleger sua sucessora a qualquer custo”. Qualquer custo, como? Lula está fazendo campanha para Dilma fora dos comícios? Está usando a máquina pública? Ou tão somente tem ido aos comícios, aparecido na propaganda eleitoral e pedido votos para sua candidata? E é a mesma Dra. Cureau quem cita “o manifesto”, ou seja, um manifesto insano, golpista, de uma reunião ocorrida na semana passada e que reuniu a fina flor da UDN, do reacionarismo.
VII
A questão é: enquanto a máquina pública não for utilizada – e não houve denúncia concreta de que esteja sendo – o Presidente da República tão somente declara o seu apoio e pede votos à sua candidata. O problema todo está no peso desse apoio, o de alguém que tem 80% de votos. O inconformismo da Dra. Sandra Cureau, e de mais gente, é com relação à popularidade de Lula. Só que popularidade de 80% não é proibida. Lula tem essa popularidade e direciona à sua candidata. É diferente de FHC, que praticamente foi escondido por Serra em 2002, quando estava na Presidência da República. Serra não queria sua imagem vinculada a Fernando Henrique, e continua não querendo, e todos sabem os motivos. O mais curioso: a campanha de Serra sequer faz comício. Nunca vi disso. Até a UDN fazia: comícios pequeninos, fechados, mas fazia. Então, fica difícil querer transferir votos se sequer comício há.
VIII
Dra. Sandra pode votar em quem bem entender. Sua declaração, agora, à Folha, deve ter conseqüências. Se simplesmente critica o empenho de Lula em eleger sua candidata, está exorbitando de suas funções. Não cabe à Dra. Cureau tecer considerações políticas, manifestar simpatia ou antipatia. A autoridade pública deve ser a lei em ação, a lei em movimento, tão só. Se sua declaração, diferentemente, aponta no sentido de alguma ilegalidade, deve imediatamente agir. Só que não agiu, nada fez. Portanto, fica no plano da crítica. Nâo cabe à autoridade pública simplesmente fazer a crítica sem conseqüência. Ou age, ou é leviana.
IX
A ação do Ministério Público, no júri, frequentemente é comparada à atuação do Inspetor Javert, de Victor Hugo, o perseguidor de Jean Valjean. Jean Valjean roubou um pão, e foi perseguido implacavelmente e por vários anos por causa disso. Ao Inspetor Javert nada interessava, a não ser perseguir. Na oratória do Júri, frequentemente é referido “Complexo de Javert”, a perseguição exacerbada, o uso da autoridade fugindo do princípio da impessoalidade, exorbitando dos meios normais, dos meios razoáveis. Ossos do ofício, a missão do Ministério Público nem sempre é a mais simpática: pauta-se pela defesa da lei, acima de tudo.
X
Aqui, em Brasília, no escândalo de Arruda, a denúncia era a de que o chefe do Ministério Público do DF, que é um ramo do Ministério Público Federal, recebia 150 mil reais ao mês para não mover ações contra o governo Arruda. Outra Procuradora do DF também foi denunciada, e em sua casa foi encontrada uma quantidade imensa de dinheiro vivo. Agora, no Mato Grosso do Sul, há denúncia envolvendo o Ministério Público também em situação semelhante, a de receber dinheiro para fechar os olhos. Um absurdo, porque se trata exatamente da autoridade que deve fiscalizar, que deve mover ações contra a corrupção nos demais poderes. A autoridade fiscalizadora, pelo que consta das denúncias, foi corrompida nesses dois casos.
XI
O limite da autoridade é a lei. A autoridade só existe dentro da lei. A autoridade só é autoridade quando está a serviço da lei. Tudo o que desbordar da lei, tudo o que desbordar dos princípios constitucionais, e for feito a pretexto do exercício da autoridade, é abuso de autoridade. Abuso de autoridade é a negação da autoridade. Não há nada mais grotesco do que ver alguém, distinguido socialmente por exercer cargo de autoridade, valer-se da autoridade que lhe foi outorgada pela República para negar os princípios da República, para sobrepor-se. É grotesco, é usurpação de poder. O poder não lhe foi concedido para isso, mas para fazer valer a lei.
XII
Dra. Sandra Cureau ultrapassou a linha, e não é de hoje. Que o Ministério Público não caia na tentação do corporativismo, o que tornaria a todos partícipes do abuso.